Está lá, em todos os livros de história que estudamos na escola, mesmo em exemplos de relatos apresentados pelos livros de português e literatura, como no poema “O Bicho”, de Manuel Bandeira, publicado em 1947, que me lembro de ter lido na sexta série do primeiro grau: “Vi ontem um bicho/ na imundície do pátio/ Catando comida entre os detritos./ Quando achava alguma coisa,/ Não examinava nem cheirava;/ engolia com voracidade./ O bicho não era um cão,/ Não era um gato,/ Não era um rato./ O bicho, meu Deus, era um homem”. O nosso problema histórico e político fundamental, núcleo de nosso atraso, de nossos dramas e dores, base de nossa identidade nacional miserável, obscurantista e autoritária, consiste exatamente no subdesenvolvimento socioeconômico.
Dito de outro modo, há um sub-aproveitamento de nosso potencial econômico e uma consequente normalização da situação de miserabilidade social que impedem, que freiam (a) a pujança de nossa vida material, o crescimento da produção e da renda; (b) a inclusão e a igualdade sociais de parcelas amplas da população; e (c) a superação do obscurantismo cultural, do fanatismo e do fatalismo que grassam em grande parte da população brasileira. Como não crescemos economicamente e não distribuímos de modo equitativo renda e riqueza, naturalizamos uma situação de baixo ou quase inexistente desenvolvimento social, de modernização cultural e de inclusão sociopolítica. Como não crescemos economicamente e não distribuímos de modo equitativo renda e riqueza, consolidamos castas sociais e estabelecemos como que a imutabilidade das posições sociais e de classe, reduzindo as oportunidades de participação ativa e significativa na sociedade a grupos e indivíduos muito específicos, em geral aqueles que têm a sorte do berço, isto é, a estabilidade familiar e a riqueza amealhada pelos genitores.
Como não crescemos economicamente e não distribuímos renda e riqueza, portanto, continuamos grandemente enquanto uma sociedade colonial, patriarcal e autoritária, em geral racialmente estruturada: castas ou estratos sociais imutáveis, poder da família patriarcal-heterossexual, meritocracia individual e autoritarismo institucional, com a crise permanente das instituições públicas, que acabam perdendo a importância e o espaço inultrapassáveis que elas possuem em uma sociedade moderna para a correlação de tradicionalismo cultural, moral individualista, autoritarismo institucional e espontaneísmo econômico, os quais, conjugados, representam o núcleo que retroalimenta nossa tragédia nacional: não nos desenvolvemos economicamente e não nos democratizamos política e culturalmente, consolidando-se uma sociedade altamente estratificada e imóvel, com castas definidas, em que a violência e o abandono institucionais substituem o reconhecimento, a inclusão e a justiça social, minimizando o sentido universalista da democracia e trazendo para o centro da vida social o obscurantismo religioso-cultural que, ao não conseguir explicar e nem resolver os problemas próprios à diversidade (situação que não se resolve pela religião, mas pela política democrática, pelo direito racional, pela cultura secularizada e pelos direitos humanos), apela exatamente ao fundamentalismo religioso entre as e pelas bases sociais e à colonização das instituições públicas “em nome de Jesus” e do Cristianismo, estabelecendo a cruzada contra a comunidade LGBTQ+, contra indígenas, contra o comunismo etc. como o mote político desse fundamentalismo arcaico sem projeto de desenvolvimento socioeconômico. Aqui, a política é substituída pela Bíblia; o político é substituído pelo pastor ignaro; o cidadão racional é substituído pelo crente cego e robotizado; e as políticas de inclusão e desenvolvimento são substituídas pelo “em nome de Jesus”, que cura desde dores físicas, passando por problemas psicológicos (espirituais, na linguagem desse primitivismo religioso próprio à teologia da prosperidade) e chegando à questão da miserabilidade e da desintegração social.
A nossa tragédia socioeconômica é também nosso drama cultural e este é aquela e leva àquela. Pobreza material produz violência, desigualdade e castas, produz abandono, desespero, fome, morte. E estes aumentam o nível de pobreza material, ao naturalizarem castas econômicas, o messianismo cultural e uma ideia errada de meritocracia que é disponível no máximo para um terço de nossa sociedade. É preciso quebrar esse círculo vicioso da tragédia. Nossas lideranças políticas e partidos democráticos (que utilizam o arcabouço normativo da modernidade, e não o fundamentalismo religioso e o obscurantismo cultural, como o PSL e a Aliança pelo Brasil), o judiciário, a intelectualidade e movimentos sociais ligados à promoção das minorias, ao fomento dos direitos humanos, à ecologia, à terra, à moradia, bem como os setores progressistas de nossas igrejas (que sabem separar religião e política, biologia e cultura) etc., precisam criar e consolidar laços de solidariedade e mutualidade e apresentar um projeto estrutural e estruturante de sociedade à população brasileira, com objetivos, passos e estratégias coletivos e institucionais de desenvolvimento, inclusão e justiça. Precisam reconhecer a necessidade de um esforço coletivo de superação de nossa tragédia colonial-republicana, precisam afirmar a centralidade das instituições públicas de um modo geral e do Estado em particular nessa tarefa ingente e urgente. Precisam, sobretudo, explicar que desenvolvimento econômico é, antes que enriquecimento individual, justiça social, riqueza pública, intersubjetiva, comum, e de que é possível alcançá-la por meio da política, aliás, somente da política como o eixo diretriz, como a prática comum e relacional de uma sociedade democrática.